Uma lição da lei seca
Uma interessante matéria veiculada na Revista Veja desta, semana, acerca da Lei Seca, pode nos levar à seguinte indagação: o que é matéria de lei, e o que deve ser deixado a critério da Administração Pública e do processo de decisão participativa?
A matéria da revista levanta a seguinte hipótese: a lei seca, ao querer regular, com precisão, o teor alcóolico (superior a 0,6 gramas por litro) no sangue do condutor de veículo – o que se afere apenas com a utilização do bafômetro –, acabou por impedir que o controle pela observação fosse feito mais diretamente.
Além do mais, quando o condutor não quiser fazer o teste, poderá se recusar, o que levará também à impossibilidade da medição.
Nesta semana, um leitor escreveu a um jornal relatando um episódio exemplar. Tendo sido abalroado por um condutor visivelmente alcoolizado, viu-se diante da seguinte situação: o policial, por não dispor de um bafômetro, afirmou não poder autuar o infrator, pela falta do equipamento!
A Lei Seca é apenas um exemplo da infinidade de leis brasileiras que, na ânsia de tudo regular e controlar, hoje primam pelos detalhes.
De modo geral, essas leis nascem mais da iniciativa parlamentar, na medida em que aos parlamentares é cobrada uma "produção" legislativa, pouco importando, muitas vezes, seu estudo técnico, sua abrangência, ou, por vezes, sua qualidade.
A sociedade tem cobrado dos parlamentares mais quantidade do que qualidade. Mais resultados em números do que em debates e participação.
O resultado, como o da Lei Seca, tão festejada, é que, muitas vezes, o "tiro sai pela culatra", pois a fiscalização dos alcoolizados no volante passou a ser uma "especialização" de grupos equipados, aplicável uniformemente em todo território nacional, tenham os municípios, ou não, condição de fazê-lo dessa forma. Exequível? Acho que não. E por que, então, uma lei nacional para regular essa matéria?
Como dissemos anteriormente nosso blog, na Câmara Municipal do Rio há um grande volume de projetos em tramitação, dos quais a totalidade dos cidadãos, menos um ou dois talvez, sabem da existência, ou do que se trata (vejam semanalmente a pauta de votação no nosso site).
Alguns dizem respeito ao planejamento da Cidade, no qual estão inseridos inúmeros detalhes técnicos: alturas das edificações (gabaritos), uso do solo, formas de parcelamento, etc.
Como discutir, com os interessados, todos esses projetos de uma só vez, com tantos detalhes, de difícil compreensão para nós mesmos, vereadores?
Na semana passada, a Câmara de Vereadores aprovou um gabarito específico para um único terreno na Penha, garantindo diretamente, aos "empreendimentos" do local uma situação diferenciada e privilegiada. Há algo mais pessoal?
Essa situação não é única, já que há tramitando, pelo menos, mais dois ou três projetos que atendem interesses também personalíssimos a serem agraciados. (PLC 48 LEME / PLC 67 BOTAFOGO / PLC 47 BANCO CENTRAL).
É esse o papel da lei?
O processo legislativo, ou melhor, a produção legislativa e o papel dos vereadores e de sua representação precisam ser revistos e rediscutidos. As leis são o mais importante produto da democracia, já que elas condicionam a liberdade do cidadão no convívio social, e a forma de comportamento dos governantes do executivo. Portanto, quem as faz tem a responsabilidade de dar a elas um conteúdo que retrate os valores sociais gerais, e, com isto, viabilizá-las pela sua compatibilidade cultural.
Será que é isso que está acontecendo na produção legislativa federal, estadual e municipal? Eis uma discussão que é do interesse de todos nós!
Um comentário:
Doutora Sonia Rabello,
Mais uma vez, meus parabéns pelo teor relevante de suas questões.
Realmente, temos que pensar melhor sobre a produção em série de leis, que conflitam com outras existentes, não “vingam” e servem, muitas vezes, a interesses escusos, além de aumentarem sobremaneira a confusão legislativa e administrativa do país.
Certa vez comentei em seu blog sobre a necessidade de se pensar o país estrategicamente, pelo menos para os próximos 50 anos, antes que algum interesseiro, sonhador ou ignorante faça leis, sem ter visão holística do país e de sua inserção no cenário mundial. Acrescento que antes que se produzam leis, há que se consultar à sociedade, através de suas representações de classe, aos cientistas sociais e políticos e intelectuais de várias vertentes.
Tenho certeza de que nunca haverá nenhuma “Babel” social ou política se todos forem estimulados ao diálogo, muito pelo contrário, todos têm a ganhar, inclusive a esquecida e desprezada TRANSPARÊNCIA DECISÓRIA.
Caso tenha interesse, leia um pequeno livreto, aparentemente sem grande importância, chamado RDA – Regulamento Disciplinar do Exército e verá que se as leis disciplinares, se coerentes e consolidadas em princípios básicos de convivência, respeito e responsabilidade, que nunca mudam, podem ser expressas em um simples livreto. No entanto, haverá sempre a necessidade de interpretação e julgamento de atos disciplinares, que caberá a instâncias gestoras ou judiciais superiores.
Deixemos que os poderes executivo e judiciário estudem os intrincados meandros da administração e das leis, enquanto o poder legislativo cuida de consultar as bases da sociedade, para ATUALIZAR as leis existentes.
Gostaria muito de ver senadores, deputados e vereadores viajando pelo mundo, participando de congressos e formando comissões de estudos para o aprimoramento e enxugamento das leis existentes, ao invés de assistir a bate-bocas insensatos e inócuos.
Obviamente, a visão exigida dos parlamentares em tal tarefa exigiria, portanto, que fossem cidadãos preparados intelectualmente, experimentados socialmente e de caráter ilibado e somente uma REFORMA POLÌTICA poderá produzir tal façanha visionária.
Mudanças ocorrem todos os dias, e espero que a visão dos três poderes de nossa nação possa acompanhar com mais eficácia e previsibilidade as necessidades enormes e esquecidas de um POVO sufocado por leis e artigos, que competem a eles mesmos interpretar, julgar e fazer cumprir.
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